quinta-feira, 14 de março de 2013

*Caricaturas da Justiça (o que devia ser e que nunca foi) - luiz flávio gomes

 

juizes
 
 
 
Durante o século XIX, Honoré Daumier levou a cabo a crítica mais devastadora da Justiça na forma de sátira.
 
A caricatura, sabe-se isso desde Kant, encerra o exagero daquilo que é característico em alguma coisa (instituição) ou em alguém. O maior mérito do artista foi para o notável jurista Gustav Radbruch, que foi ministro da Justiça de Weimar e, depois, professor proscrito pelo nazismo, ao por em evidência as tipologias do pathos judicial:
 
 “a venalidade, a cegueira, a insensatez e a indiferença dos juízes; a cobiça e os sofismas dos advogados”.
 
Quase dois séculos depois [anos 50-70 no Brasil], a mesma desilusão o cidadão sentia ao ter sua primeira experiência direta com os “palácios” da Justiça e tropeçar com um sistema (judicial) incompreensivelmente barroco, dotado de uma maquinaria que levava anos para a decisão dos conflitos [nos anos 50-70 a Justiça era morosa].
 
Mais ainda: qualquer pessoa podia observar [lá nos idos dos anos 50-70] um poder (judicial) demasiadamente autoritário, excessivamente burocrático, com prerrogativas desiguais, pouco aberto à diversidade e às dinâmicas sociais e calcado sobre um modelo que pode ter funcionado para o país em outra época [durante a primeira República, talvez] e de outro modo [eram tempos obscuros da Justiça no nosso país].
 
Na imagem acima os dois juízes togados são capturados em silenciosa conivência [isso se percebia também por aqui nos anos 50-70], com sorrisos de cumplicidade, retratando grotescamente um âmbito bastante corrompido [no Brasil isso lembra as magistraturas nomeadas dos tempos das capitanias hereditárias e do império, talvez também das primeiras Repúblicas; coisas de antigamente].
 
O cidadão [nos anos 50-70 o cidadão brasileiro desocupado e preocupado com o princípio da igualdade] perguntava: “Todas as partes, os poderosos e os miseráveis, são igualmente escutados e levados em conta? Todos recebem o mesmo tratamento e contam com os mesmos direitos?” [nos anos 50-70 tinha bastante sentido essas filosóficas preocupações, porque a desigualdade entre as pessoas naquele tempo era muito grande].
 
Aqueles que não possuíam [lá nos anos 50-70] os devidos conhecimentos do funcionamento da Justiça, o dinheiro necessário para pagar as custas processuais [altas, naquela época] e as influências necessárias [foi um período em que a magistratura ainda era colonizada pelos grandes poderes políticos e econômicos, seguindo suas orientações para punir adversários, absolver amigos, censurar jornais etc.] constatavam [naquele tempo, bem entendido] que não estavam em condições de defender e fazer valer seus direitos. Nesse momento [naqueles tempos de uma Justiça conturbada] desaparecia o sentimento de equidade, que é a base da legitimidade do Poder Judiciário.
 
A rigor, se trata da existência de certas coordenadas estruturais relacionadas [naquela época] com um modo cultural [hoje isso talvez tenha mudado, depois da internet e da ida do homem à lua], que queria pensar o amanhã com as ideias de ontem e administrá-lo com as instituições e o modelo jurídico [legalista] de anteontem [do século XIX, do tempo da Revolução francesa].
 
Para além de reações vaidosas e superficiais [coisas comuns nos anos 50-70], a Justiça sempre padeceu de um mal grave [até, pelo menos, esse citado período] que, sem a devida cura, permanecerá e piorará com o passar do templo [as coisas realmente eram muito difíceis naqueles tempos sombrios, de Justiça obscura, cara, burocrática e inacessível; eles não tinham a internet nem a informática].
 
O Poder Judiciário era uma instituição com fortes resistências às mudanças [coisas daqueles nebulosos tempos], que contava, ademais, com o efeito espelho, ou seja, gerava [somente naquele período histórico difícil da nação brasileira] tipos de agentes feitos à sua própria imagem e semelhança.
 
Não era de se estranhar [naquela época, bem entendido] que aqueles símbolos, ritos e ritmos retratados por Daumier se reeditassem de forma permanente [até os idos de 50-70], a partir da cooptação de um corpo cerrado de juízes, colocado social e ideologicamente fora da sociedade [até os anos 50-70 a grande maioria dos brasileiros não tinha quase nenhuma escolaridade, havia muitos analfabetos e a forma aristocrática de viver recordava os tempos do império].
 
Não é casual que outras corporações (clero, militares, poderes econômicos), que durante décadas juraram fidelidade aos regimes de fato [não de Direito], souberam articular suas redes de poder e fazer prosperar seus interesses [tudo isso ficava muito evidente no funcionamento serviçal da Justiça dos anos 50-70]. Aliás, ainda hoje, se nota que esses grupos econômica e midiaticamente fortes, continuam fazendo prosperar seus interesses [mas naquela época somente cerca de 10 famílias dominavam todo o poder midiático, sempre comprometido com o poder fático econômico escravagista].
 
A lógica institucional [do Poder Judiciário daqueles anos 50-70], marcada pelas decisões e gestão sempre concebidas de cima para baixo [era forte o autoritarismo na época], desde espaços rigorosamente hierarquizados [militarmente] que são exercidos desde as cúpulas das instituições, se assenta em burocracias não poucas vezes subservientes, cuja característica central sempre foi a de catalisar e assimilar os provectos valores do conservadorismo, ou seja, a defesa do “statu quo”, abominando-se qualquer tipo de inovação [foram tempos realmente difíceis, de pouca abertura democrática e institucional; não se falava em informática naquela época e os processos se resumiam em toneladas de papeis].
 
O Poder Judiciário [isso nos idos dos anos 50-70] chegou, em alguns momentos, a se caracterizar pela defesa das suas discutíveis prerrogativas desiguais, assim como pela indolência de alguns dos seus membros, reclamando sempre sua impoluta e asséptica neutralidade [que na época era contestada como falsa]. Não era por meio das leis, sim, por meio desses códigos [códigos particulares] que se formavam as mentalidades, as atitudes e os procedimentos [outro era o ser humano daquela época, quando ele contava com mais ou menos 7 milhões de anos de evolução].
 
Talvez o maior desafio de transformação do Poder Judiciário fosse colocar jovens agentes no centro da estrutura das mudanças. Mas isso requeria uma adaptação das pessoas a uma radical revisão dos seus enfoques, para convertê-los em empreendedores de uma reforma que devia ser estrutural [o Brasil, na época, carecia de grandes reformas estruturais, contava com uma infraestrutura precária, escolarização baixa, salários minguados, grande concentração do poder econômico, políticos desonestos, administradores corruptos, governantes populistas etc.; tempos difíceis aqueles].
 
Era necessária [naquele tempo] a construção de uma política de formação inicial e de capacitação permanente [fazia muita falta naquela época a atualização permanente do juiz, com estudos em filosofia, sociologia, criminologia, economia, jurisprudência etc.].
Há momentos na vida política e social de cada país nos quais se geram as condições decisivas para as mudanças e, uma vez produzidas as rupturas, os processos se tornam irreversíveis [naqueles anos 50-70 estávamos precisando de mudanças e rupturas, que poderiam ter alterado o perfil do Poder Judiciário].
 
Os juízes eram convidados a uma reflexão autocrítica sobre a função judicial e, tal como os pedreiros, encarregados de reparar um edifício cuja estrutura estava cada dia mais socialmente questionada [tudo isso ocorria naquele tempo]. Sem um Poder Judiciário forte e independente não há proteção dos direitos nem das regras básicas de convivência, porém sua legitimidade reside na aceitação pelos juízes de que eles são os garantes de tudo isso [grande parte da magistratura da época, por razões culturais e de formação jurídica, não tinha consciência dessa função impostergável, de garante dos direitos fundamentais; não foi um período fácil para os brasileiros daquele momento].
 
Qualquer reação às críticas construtivas que eram assimiladas em termos de conspiração ou de cruzada contra os juízes [coisas correntes naqueles anos 50-70] não tinham o poder de impedir a evocação de Daumier, que teve que padecer seis meses de prisão por delito de opinião contra o monarca.
 
 A história ensina que a censura de Luis Felipe I deu lugar às barricadas de 1848, que lançaram por terra o último reinado naquele país, abrindo espaço para a II República [pena que a opressão hierarquizada da magistratura dos anos 50-70 não tenha provocado aqui a mesma revolução ocorrida na França].
 
 
 
 
 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Espaço acadêmico - afirme seu posicionamento!

Quem sou eu

Minha foto
são paulo, são paulo, Brazil
profissional crítico do Direito...que concilia a racionalidade com as emoções..ou pelo menos tenta....avesso à perfídia...e ao comodismo que cerca os incautos... em tempo: CORINTHIANO!!

Seguidores

Arquivo do blog

Powered By Blogger

Páginas