Inocente
preso 13 anos sem sentença é retrato da falência do Estado
Por Aury Lopes
Jr e Alexandre Morais da Rosa
O processo penal
brasileiro e o respectivo sistema de administração de Justiça produzem
‘misérias’, a la Carnelutti, de forma contínua e ininterrupta. Prisões
cautelares injustas e processos que se arrastam por anos, infelizmente não são
fatos isolados.
O artigo 5º, inciso
LXXVIII da Constituição consagra o ‘direito de ser julgado em um prazo
razoável’, o nosso mais ‘jovem’ direito fundamental, infelizmente um absoluto
desconhecido no dia a dia do processo penal.
Existem dúzias de
prazos no Código de Processo Penal, mas a quase totalidade são prazos despidos
de sanção, ou seja, absolutamente ineficazes. Quando se afirma que no Brasil é
adotada a ‘teoria do não prazo’, não significa que não se os tenha, senão que
ao serem destituídos de sanção processual, equivale-se a não ter prazo algum.
Perguntas simples
como: “quanto tempo pode durar o processo penal no Brasil?” ou “quanto tempo
pode durar uma prisão preventiva?” seguem sem resposta em pleno século XXI e na
vigência da Constituição de 1988 e da Convenção Americana de Direitos Humanos.
É inacreditável que
não saibamos e não possamos responder a esses dois questionamentos. Existe uma
(de)mora jurisdicional imune e impune, que cobra uma fatura muito alta dos
jurisdicionados, especialmente no processo penal. Garimpando na jurisprudência
brasileira, os casos surgem aos montes, mas alguns são especialmente trágicos.
Um deles é o de Marcos Mariano da Silva.
Conforme noticiou o
Superior Tribunal de Justiça no dia 19 de outubro de 2006, no REsp 802.435, o
Estado brasileiro foi condenado em última instância apagar R$ 2 milhões por
danos morais e materiais ao cidadão Marcos Mariano da Silva, de 58 anos,
mantido preso ilegalmente por mais de 13 anos no presídio Aníbal Bruno, em
Recife. Segundo a ata e julgamento, esse foi o mais grave atentado à violação
humana já visto na sociedade brasileira.
Como se pode ler na
notícia sobre o julgamento, "por unanimidade, os ministros reconheceram a
extrema crueldade a que foi submetido um cidadão pelas instituições públicas.
Marcos Mariano foi preso sem inquérito, sem condenação alguma, e sem direito a
nenhuma espécie de defesa", sustentou o advogado. "Foi simplesmente
esquecido no cárcere, onde ficou cego dos dois olhos e submetido aos mais
diversos tipos de constrangimento moral".
Além de ter contraído
tuberculose na prisão, o brasileiro foi acusado de participar de diversas
rebeliões, ficando inclusive mantido em um presídio de segurança máxima por
mais de seis meses, sem direito a banho de sol. "É o caso mais grave que
já vi", assinalou a ministra Denise Arruda. "Mostra simplesmente uma
falha generalizada do Poder Executivo, do Ministério Público e do Poder
Judiciário."
Marcos foi preso em
27 de julho de 1985 e conseguiu o Habeas Corpus em 25 de agosto de 1998.
Não havia nada que justificasse a prisão, a não ser o encaminhamento de um
simples ofício.
"Esse homem
morreu e assistiu sua morte no cárcere", afirmou o ministro Teori Zavascki
(hoje no STF). "O pior é que não teve período de luto", prosseguiu
consternado. Marcos viu, durante o período em que permaneceu na prisão, a
desagregação de toda a família. Então, casado e com 11 filhos, em meados de
1987, hoje não lhe restaria nada.
A ministra Denise
Arruda ressaltou que Marcos Mariano da Silva perdeu a capacidade de se
movimentar, de viver com autonomia. "Aqui não se trata de generosidade.
Aqui se trata de um brasileiro que vai sobreviver não se sabe como". A
primeira instância fixou o valor em R$ 356 mil. O Tribunal de Justiça de São
Paulo fixou o valor em dois milhões, o que foi mantido pelo STJ. O ministro
Luiz Fux (hoje também no STF), relator do processo, reviu o posicionamento de
indenização quanto ao caso (veja abaixo). E, ao final do julgamento, deu ganho
de causa a Marcos Mariano. Fazendo inclusive constar no relatório e no voto, se
tratar do “mais grave atentado à violação humana já visto na sociedade
brasileira”, no que foi aceito à unanimidade.
Em suma, ainda há um
longo caminho a ser percorrido nessa matéria, mas, com certeza, essas decisões
constituem marcos que não podem ser esquecidos, para que fatos similares sejam
evitados.
PROCESSUAL CIVIL.
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E
MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DECORRENTE DE ATOS PRATICADOS PELO
PODER JUDICIÁRIO. MANUTENÇÃO DE CIDADÃO EM CÁRCERE POR APROXIMADAMENTE TREZE
ANOS (DE 27/09/1985 A 25/08/1998) À MINGUA DE CONDENAÇÃO EM PENA PRIVATIVA DA
LIBERDADE OU PROCEDIMENTO CRIMINAL, QUE JUSTIFICASSE O DETIMENTO EM CADEIA DO
SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO. ATENTADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
1. Ação de
indenização ajuizada em face do Estado, objetivando o recebimento de
indenização por danos materiais e morais decorrentes da ilegal manutenção do
autor em cárcere por quase 13 (treze) anos ininterruptos, de 27/09/1985 a
25/08/1998, em cadeia do Sistema Penitenciário Estadual, onde contraiu doença
pulmonar grave (tuberculose), além de ter perdido a visão dos dois olhos
durante uma rebelião.
2. A Constituição da
República Federativa do Brasil, de índole pós-positivista e fundamento de todo
o ordenamento jurídico expressa como vontade popular que a República Federativa
do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um
dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana como instrumento realizador
de seu ideário de construção de uma sociedade justa e solidária.
3. Consectariamente,
a vida humana passou a ser o centro de gravidade do ordenamento jurídico, por
isso que a aplicação da lei, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva
operar a concreção jurídica, deve perpassar por esse tecido
normativo-constitucional, que suscita a reflexão axiológica do resultado
judicial.
4. Direitos
fundamentais emergentes desse comando maior erigido à categoria de princípio e
de norma superior estão enunciados no art. 5.º da Carta Magna, e dentre outros,
os que interessam o caso sub judice destacam-se:
XLIX - é assegurado aos presos
o respeito à integridade física e moral; (...) LIII - ninguém será processado
nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV - ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em
processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória; (...) LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou
por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos
casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
(...) LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade
judiciária; LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei
admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;
5. A plêiade dessas
garantias revela inequívoca transgressão aos mais comezinhos deveres estatais,
consistente em manter-se, sem o devido processo legal, um ser humano por quase
13 (treze) anos consecutivos preso, por força de inquérito policial inconcluso,
sendo certo que, em razão do encarceramento ilegal, contraiu o autor doenças,
como a tuberculose, e a cegueira.
6. Inequívoca a
responsabilidade estatal, quer à luz da legislação infraconstitucional (art.
159 do Código Civil vigente à época da demanda) quer à luz do art. 37 da
CF/1988, escorreita a imputação dos danos materiais e morais cumulados, cuja
juridicidade é atestada por esta Eg. Corte (Súmula 37/STJ)
7. Nada obstante, o
Eg. Superior Tribunal de Justiça invade a seara da fixação do dano moral para
ajustá-lo à sua ratio essendi, qual a da exemplariedade e da
solidariedade, considerando os consectários econômicos, as potencialidades da
vítima, etc, para que a indenização não resulte em soma desproporcional.
8. In casu,
foi conferida ao autor a indenização de R$ 156.000,00 (cento e cinqüenta e seis
mil reais) de danos materiais e R$ 1.844.000,00 (um milhão, oitocentos e quarenta
e quatro mil reais) de danos morais.
9. Fixada a gravidade
do fato, a indenização imaterial revela-se justa, tanto mais que o processo
revela o mais grave atentado à dignidade humana, revelado através da via
judicial.
10. Deveras, a
dignidade humana retrata-se, na visão Kantiana, na autodeterminação; na vontade
livre daqueles que usufruem de uma vivência sadia. É de se indagar, qual a
aptidão de um cidadão para o exercício de sua dignidade se tanto quanto
experimentou foi uma "morte em vida", que se caracterizou pela
supressão ilegítima de sua liberdade, de sua integridade moral e física e de
sua inteireza humana?
11. Anote-se,
ademais, retratar a lide um dos mais expressivos atentados aos direitos
fundamentais da pessoa humana. Sob esse enfoque temos assentado que "a
exigibillidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos
humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal
inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1º que 'todos os homens
nascem livres e iguais em dignidade e direitos'.
Deflui da Constituição federal
que a dignidade da pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de
direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados
direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da
jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito
processual". (REsp 612.108/PR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJ
03.11.2004) 12. Recurso Especial desprovido.
Aury
Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de
Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de
Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Alexandre Morais da
Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de
Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali
(Universidade do Vale do Itajaí).
Revista Consultor Jurídico
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